Lei de sociedade

por Chrystian Chaves

A vida em grupo afeta a todos. Emoções, decisões, comportamentos são fortemente influenciados por pequenos grupos nos quais as pessoas se inserem, queiram ou não, como trabalho, família, grupo de amigos, escola. Ou por grandes grupos como a cultura de uma nação ou estado. Há que se concordar que reencarnar no Afeganistão, no Brasil ou em Angola trará desafios diversos para a formação de personalidades potencialmente diferentes entre si.

A Doutrina Espírita deixa clara sua posição frente à vida em sociedade, assim como os estudos e pesquisas atuais. No Livro do Espíritos, em sua terceira parte, Kardec faz uma análise sobre a necessidade da vida em sociedade. Ele faz a seguinte pergunta:

A vida social está na Natureza?
Certamente. Deus fez o homem para viver em sociedade. Não lhe deu inutilmente a palavra e todas as outras faculdades necessárias à vida de relação.[1]

Martin Seligman, fundador da Psicologia Positiva, corrobora com esse pensamento de que a vida em sociedade é condição implícita ao homem ao afirmar que somos seres indiscutivelmente sociais e essa pode ser considerada nossa grande habilidade em comparação com os outros animais.[2] Importante considerar aqui que a humanidade se encontra sempre em constante escalada evolutiva e os avanços são alcançados e usufruídos coletivamente. Assim, quando alguém desenvolve um veículo elétrico, primeiramente precisou se apropriar de muito conhecimento anteriormente socializado por outros.

A vida em sociedade é provocativa, ela estimula o movimento, a adotar comportamentos diferentes, a repensar o papel assumido diante dos outros. O psicólogo e escritor Rollo May afirma que nosso cérebro cria e recria todos os dias simulações de mediação das relações. É através dos outros que adquirimos parcela expressiva de nosso senso de realidade.[3]

As influenciações socioambientais apresentam perspectivas diferentes, permitindo ao homem oportunidades de aprendizado no encontro com o outro. Assim, encontraremos no Livro dos Espíritos que o homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem todos progridem simultaneamente e do mesmo modo. Dá-se então que os mais adiantados auxiliam o progresso dos outros, por meio do contato social.[4] Dessa forma, o progresso e a vida em sociedade se conectam de alguma maneira, enquanto Leis da natureza, de forma a sustentar o homem em seu processo de aprendizado-evolução.

Não é possível precisar o quanto as influenciações socioambientais afetam cada um, mas há consenso sobre seu grande potencial de intervenção na formação de cada indivíduo e sobre as escolhas das pessoas. Consultado por Kardec, um Espírito diz o seguinte a respeito das influências do meio, em relato publicado na Revista Espírita de março de 1858:

O pendor para o mal estava na vossa natureza, ou fostes também influenciado pelo meio em que vivestes?
Resp. – Sendo um Espírito inferior, a tendência para o mal estava na minha própria natureza. Quis elevar-me rapidamente, mas pedi mais do que comportavam minhas forças.

Se tivésseis recebido sãos princípios de educação, ter-vos-íeis desviado da senda criminosa?
Resp. – Sim, mas eu havia escolhido a condição do nascimento.[5]

Segundo esse Espírito, a condição de nascimento muito contribuiu para as escolhas e caminhos que seguiu. Embora reconheça o quão diferente poderia ser sua história diante de outro cenário. Algo que fica claro, mas que não será analisado neste artigo é que esse Espírito acreditou que conseguiria dar passos mais largos em seu processo de aprendizado evolutivo, porém, talvez tenha mergulhado em atmosfera mais densa do que poderia suportar.

A grande influência do meio também é apontada por Kardec na seguinte questão:

Em suas novas existências conservará o Espírito traços do caráter moral de suas existências anteriores?
Isso pode dar-se. Mas, melhorando-se, ele muda. Pode também acontecer que sua posição social venha a ser outra. Se de senhor passa a escravo, inteiramente diversos serão os seus gostos e dificilmente o reconheceríeis. Sendo o Espírito sempre o mesmo nas diversas encarnações, podem existir certas analogias entre as suas manifestações, se bem que modificadas pelos hábitos da posição que ocupe, até que um aperfeiçoamento notável lhe haja mudado completamente o caráter, porquanto, de orgulhoso e mau, pode tornar-se humilde e bondoso, se se arrependeu.[6]

Partindo do entendimento de que a vida em sociedade é da natureza e de sua reconhecida capacidade de influenciação, é preciso questionar, e aqueles que escolhem o isolamento? E os que preferem se relacionar o mínimo possível, existem ainda aqueles que escolhem o isolamento em nome do autoconhecimento a da conexão com a transcendência. O que pensar nesses casos?

Sobre isso encontramos as seguintes questões no Livro dos Espíritos:

É contrário à Lei da Natureza o insulamento absoluto?
Sem dúvida, pois que por instinto os homens buscam a sociedade e todos devem concorrer para o progresso, auxiliando-se mutuamente.[7]

Procurando a sociedade, não fará o homem mais do que obedecer a um sentimento pessoal, ou há nesse sentimento algum providencial objetivo de ordem mais geral?
O homem tem que progredir. Insulado, não lhe é isso possível, por não dispor de todas as faculdades. Falta-lhe o contato com os outros homens. No insulamento, ele se embrutece e estiola.
Homem nenhum possui faculdades completas. Mediante a união social é que elas umas às outras se completam, para lhe assegurarem o bem-estar e o progresso. Por isso é que, precisando uns dos outros, os homens foram feitos para viver em sociedade e não insulados.[8]

Sobre essa questão Martin Seligman fala que os efeitos devastadores da solidão, muito mais que a depressão, sobre a saúde mental e física são absolutamente claros. E em uma pesquisa realizada em Massachussets chegou-se a uma conclusão interessante: quanto mais perto uma pessoa vivia de alguém que se sentia solitário, mais solitária ela se sentia. O mesmo aconteceu com a depressão. Já a felicidade, surpreendentemente, era mais contagiosa que a solidão ou a depressão.[9]

Parece, então, que o isolamento pode levar ao adoecimento e impossibilitar o suporte social, que é fator de profunda relevância para o desenvolvimento individual e social.

Kardec aponta que escolher vida fora da sociedade pode dificultar o aproveitamento de oportunidades de expiação, além de se perder valiosas ocasiões de auxílio mútuo. No Livro dos Espíritos ele coloca:

Que se deve pensar dos que vivem em absoluta reclusão, fugindo ao pernicioso contato do mundo?
Duplo egoísmo.

Mas não será meritório esse retraimento, se tiver por fim uma expiação, impondo-se aquele que o busca uma privação penosa?
Fazer maior soma de bem do que de mal constitui a melhor expiação. Evitando um mal, aquele que por tal motivo se insula cai noutro, pois esquece a lei de amor e de caridade.[10]

Harold Koenig, médico e pesquisador no campo de espiritualidade e saúde, apresenta um estudo interessante no que tange ao suporte social. Nesse estudo foram avaliados homens saudáveis com idade entre 40 e 70 anos, concluindo que os que apresentavam isolamento social tiveram mortalidade por qualquer causa cerca de 50% maior e risco de doença cardiovascular 80% maior do que os que não apresentavam isolamento. O mesmo autor diz que o suporte social alivia os efeitos de estressores psicológicos, da depressão e de outros distúrbios emocionais. Por outro lado, sentimentos de isolamento, solidão e retraimento social podem levar a um distúrbio emocional.[11]

A vida no atual modelo de sociedade, baseado no individualismo, é causador de profundos sofrimentos e isso, por si, justificaria a escolha pelo isolamento. Um mundo no qual é comum que uma lógica social implementada por poucos, motivados por interesses pessoais, invada a vida das pessoas causando desequilíbrios e dificuldades. Como diz o sociólogo Zygmunt Bauman[12] estamos em um mundo onde as pessoas são persuadidas a aceitar as normas criadas pela lógica de qualquer um, onde a produção não atende à demanda, são os produtos que determinam o percurso do consumo, e onde o pragmatismo tornou-se representante da racionalidade.

Nas próprias vivências sociais é possível encontrar fontes geradoras de sofrimento, como é apontado na introdução do Livro dos Espíritos:

Entre as causas mais comuns de sobre-excitação cerebral, devem contar-se as decepções, os infortúnios, as afeições contrariadas, que, ao mesmo tempo, são as causas mais frequentes de suicídio.[13]

As causas elencadas são bastante comuns ainda hoje por serem implícitas à vida em sociedade. No entanto, é da própria sociedade que podem nascer os benefícios para sanar e auxiliar o homem em seus infortúnios. Em O céu e o inferno Kardec diz assim:

A loucura não é das Leis divinas, pois resultando materialmente da ignorância, da sordidez e da miséria, pode o homem debelá-la. Os modernos recursos da higiene, que a Ciência hoje executa e a todos faculta, tende a destruí-la. Sendo o progresso condição expressa da humanidade, as provações tendem a modificar-se, acompanhando a evolução dos séculos. Dia virá em que as provações devam ser todas morais; e quando a Terra, nova ainda, houver preenchido todas as fases da sua existência, então se transformará em morada de felicidade, como se dá com os planetas mais adiantados.[14]

O texto, que também pode ser consultado na Revista Espírita de outubro de 1861[15], ressalta o que as pesquisas e avanços científicos mais recentes tem apontado. Ou seja, que os benefícios positivos das influenciações sociais superam os malefícios. E certos sentimentos só podem ser vivenciados em comum.

Sentimentos como amor, gratidão e perdão são eminentemente sociais. Nesse sentido somos como uma rede de interação enviando e recebendo sinais emocionais, como aponta o psicólogo positivo e escritor Daniel Goleman:

Transmitimos e captamos modos uns dos outros, algo como uma economia subterrânea da psique, em que alguns encontros são tóxicos, outros, revigorantes.[16]

Diante disso, é preciso considerar que cada pessoa assume certa parcela de responsabilidade de suas ações perante os outro, por influenciar voluntaria ou involuntariamente o meio a sua volta. Assim Kardec evidencia essa influência exercida sobre os outros:

Para certos homens, o meio onde se acham colocados não representa a causa primária de muitos vícios e crimes?
Sim, mas ainda aí há uma prova que o Espírito escolheu, quando em liberdade, levado pelo desejo de expor-se à tentação para ter o mérito da resistência.

Quando o homem se acha, de certo modo, mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se lhe torna um arrastamento quase irresistível? 
Arrastamento, sim; irresistível, não; porquanto, mesmo dentro da atmosfera do vício, com grandes virtudes às vezes deparas. São Espíritos que tiveram a força de resistir e que, ao mesmo tempo, receberam a missão de exercer boa influência sobre os seus semelhantes.[17]

É preciso ver além dos próprios desejos e crenças, identificar direitos, responsabilidades e deveres comuns, seja por respeito às normas ou porque já se consegue reconhecer no outro um companheiro de jornada. Temos obrigações perante o cenário social segundo Kardec:

Da necessidade que o homem tem de viver em sociedade, nascem-lhe obrigações especiais?
Certo e a primeira de todas é a de respeitar os direitos de seus semelhantes. Aquele que respeitar esses direitos procederá sempre com justiça. No vosso mundo, porque a maioria dos homens não pratica a lei de justiça, cada um usa de represálias. Essa a causa da perturbação e da confusão em que vivem as sociedades humanas. A vida social outorga direitos e impõe deveres recíprocos.[18]

No envolvimento com os deveres e direitos é possível ocorre um processo educativo e podem nascem atitudes de enriquecimento da vida comum, mas também podem nascer dificultadores que tornarão a vida de muitos mais pesada. Há momentos onde o egoísmo é capaz de afetar a muitos e fazer sofrer. Em uma ou outra situação é estabelecido contrato perante a Lei Divina onde as partes assumem responsabilidades enquanto organismos de um mesmo sistema. Assim fala Kardec no Livro dos Espíritos:

Há pessoas que, por culpa sua, caem na miséria. Nenhuma responsabilidade caberá disso à sociedade?
Certamente. Já dissemos que a sociedade é muitas vezes a principal culpada de semelhante coisa. Ademais, não tem ela que velar pela educação moral dos seus membros? Quase sempre, é a má-educação que lhes falseia o critério, em vez de sufocar-lhes as tendências perniciosas.[19]

Adotar uma conduta individual de quem considera a vida para além de uma encarnação deve ser entendida como uma condição sine qua non à própria existência. Dessa forma, haverá o tempo em que a sociedade perpetuará equilíbrio e amparo permitindo que a vida em sociedade e as influenciações socioambientais assumam a posição de acolher ao invés de adoecer. Segundo Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo:

A calma e a resignação hauridas da maneira de considerar a vida terrestre e da confiança no futuro dão ao espírito uma serenidade que é o melhor preservativo contra a loucura e o suicídio. Com efeito, é certo que a maioria dos casos de loucura se deve à comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não tem a coragem de suportar. Ora, se encarando as coisas deste mundo da maneira por que o Espiritismo faz que ele as considere, o homem recebe com indiferença, mesmo com alegria, os reveses e as decepções que o houveram desesperado noutras circunstâncias, evidente se torna que essa força, que o coloca acima dos acontecimentos, lhe preserva de abalos a razão, os quais, se não fora isso, a conturbariam.[20]

Há que se considerar, então, o papel que cada um deve assumir perante a vida e o ambiente no qual se encontra. Nas palavras do benfeitor espiritual Emmanuel sem a harmonia de cada peça na posição em que se encontra, toda produção é contraproducente e toda boa tarefa impossível.[21]

Para encerrar, fica aqui o convite à ponderação em torno das palavras do Espírito Ivon, pelo médium Vinícius Lara, a respeito de nossa responsabilidade diante da coletividade e o quanto nossas atitudes impactam o micro sistema social em torno de nós, que por sua vez reverbera em um macro sistema social:

Mesmo em se considerando os diferentes planejamentos encarnatórios, como se explica que líderes e celebridades, às vezes notavelmente medianos em termos de ascensão moral, tenham forte influência sobre os destinos das coletividades?
As coletividades se formam por afinidade e sintonia.  Quando nos deparamos com o escândalo público através da TV ou nas ruas, com o escárnio político ou com a indução perniciosa das massas por parte de ícones da cultura, estamos diante de grande espelho em que a mentalidade coletiva se vê refletida, em sua busca incessante pelo espetáculo e pelo prazer. Não são as celebridades que incendeiam as multidões.  Desde os tempos mais remotos, é sempre a multidão que escolhe seus heróis. A fim de confirmarmos essa assertiva, basta que nos lembremos da figura de Barrabás, dentre tantas outros da história pretérita e recente de nossa civilização.[22]

Bibliografia

Bauman, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

Costa, Vinícius Lara da [pelo Espírito Ivon]; Silva, Daniel Salomão; Coelho, Humberto Schubert [orgs.]. Diálogos Espíritas. Juiz de Fora, MG: Sociedade Espírita Primavera, 2019.

Goleman, Daniel. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

Goleman, Daniel. Foco: a atenção e seu papel fundamental para o sucesso. Rio de Janeiro, Objetiva, 2014.

Kardec, Allan. O Céu e o Inferno [tradução de Manuel Justiniano Quintão]. Rio de Janeiro: Feb, 2007.

Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo [tradução de Guillon Ribeiro]. Brasília: Feb, 2013.

Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos [tradução de Guillon Ribeiro]. Brasília: Feb. 2013.

Kardec, Allan. Revista Espírita, março de 1858 (Conversas familiares de além túmulo – O assassino Lemaire).

Kardec, Allan. Revista Espírita, outubro de 1861 (Ensinamentos e dissertações Espíritas – Os cretinos).

Koenig, Harold G. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.

May, Rollo. O homem a procura de si mesmo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

Seligman, Martin E. P. Florescer: uma nova compreensão da felicidade e do bem-estar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

Xavier, Francisco Cândido (pelo Espírito Emmanuel). O Consolador. Rio de Janeiro, RJ: Feb, 1985.


Referências

[1] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 766.

[2] Seligman, Martin E. P. Florescer: uma nova compreensão da felicidade e do bem-estar, cap. 7.

[3] May, Rollo. O homem a procura de si mesmo, cap. 1.

[4] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 779.

[5] Kardec, Allan. Revista Espírita,Conversas familiares de além túmulo – O assassino Lemaire.

[6] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 216.

[7] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 767.

[8] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 768.

[9] Seligman, Martin E. P. Florescer: uma nova compreensão da felicidade e do bem-estar, cap. 7.

[10] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 770.

[11] Koenig, Harold G. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade, cap. 3.

[12] Bauman, Zygmunt. Retrotopia, cap. 1.

[13] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, item 15.

[14] Kardec, Allan. O Céu e o Inferno, cap. 8, parte 2.

[15] Kardec, Allan. Revista Espírita, Ensinamentos e dissertações Espíritas – Os cretinos

[16] Goleman, Daniel. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente, cap. 8.

[17] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questões 644 e 645.

[18] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 877.

[19] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos, questão 813.

[20] Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. 5.

[21] Xavier, Francisco Cândido (pelo Espírito Emmanuel). O Consolador, questão 57.

[22] Costa, Vinícius Lara da [pelo Espírito Ivon]; Silva, Daniel Salomão; Coelho, Humberto Schubert [orgs.]. Diálogos Espíritas, questão 111.

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