Por Ligia Inhan
Recentemente a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) publicou uma parte do Acervo Canuto Abreu, através do Projeto Allan Kardec. São 50 textos de Kardec, pertencentes a um conjunto de centenas de cartas, rascunhos, notas e preces que podem ser estudadas academicamente como fonte primária. Um tesouro que interessa tanto à História quanto a nós, espíritas.
Não tenho conhecimento sobre o critério de escolhas dos primeiros 50 textos de Kardec. Mas fiquei gratamente surpresa com o que encontrei.
Numa análise inicial desses documentos (que vai evoluir com a publicação dos demais), há algumas características da personalidade de Kardec que sobressaíram para mim e que gostaria de destacar aqui.
Sim, Kardec era muito religioso
A primeira delas é o caráter religioso. Sim, Kardec era muito religioso. Ao contrário do que o senso comum tem dito, de alguns anos para cá, Kardec desde sempre demonstra ter uma religiosidade profunda e isso pode ser visto logo no primeiro documento de 1857 (Prece – 1857 [1]). Só esse documento já daria uma dissertação, mas mais do que isso, ele demonstra uma faceta de Kardec preocupada de servir a causa com humildade e entrega aos desígnios de Deus. Creio que esse pequeno trecho poderia servir de mantra para cada autor ou médium espírita que queira se arvorar em publicar seus textos e dos Espíritos que se comunicam através deles.
Mas não é só por causa desta e das outras preces que Kardec demonstra a sua fé em Deus e a confiança de que a Doutrina dos Espíritos é (ou era?) um dos maiores legados para a humanidade. Em outras tantas cartas aparece essa resignação, humildade, certeza; são invejáveis, devo ressaltar, tal como o homem de bem que está descrito no Evangelho Segundo o Espiritismo.
Em uma carta para o Sr. Ganipel, a metódica organização das correspondências recebidas, respondidas e enviadas, nos dá uma ponta do senso de organização que Kardec devia ter. Não é por outro motivo que a denominação de codificador da Doutrina é mais do que justificada. Esta rotina nos remete ao que hoje qualquer aplicativo de correspondência eletrônica faz. Imaginemos o que faria Kardec na era da Internet!
Nos textos aparecem dois tipos de críticos: os críticos que são simpatizantes mas que, segundo os critérios de Kardec, entendem a doutrina de um modo enviesado; e os críticos externos à doutrina.
Na carta ao Sr. Lourrain, de 1862, por exemplo, fica patente a posição austera de Kardec quanto à fidelidade dos pressupostos espíritas, bem como a finura de trato para descartar quaisquer textos que não estão em acordo com a Doutrina. Por outro lado, além da manutenção de uma amizade sincera e apoio aos confrades, com palavras de incentivo e concordância, Kardec não deixa de esclarecer como é melhor responder aos detratores, mesmo que eles já tenham ultrapassado “os limites das conveniências”, conforme ele próprio diz.
Dentre as rotineiras evocações dos Espíritos, chama a atenção o pedido de Kardec para enviar nomes para reuniões com médiuns de cura, depois de verificada a veracidade das informações. Essa atitude revela bem a sua confiança nos espíritas, nos médiuns e nos espíritos. Também demonstra que a Doutrina dos Espíritos bem estudada produzia frutos a quem solicitasse de maneiras variadas.
Por fim, as questões financeiras estão presentes em muitas cartas e também nas preces. A preocupação em manter o trabalho pessoal e o trabalho pela doutrina sustentáveis eram pedidos recorrentes nas preces. Destaca principalmente, o cuidado de manter a independência das publicações de pessoas que poderiam querer influenciar o conteúdo de forma leviana.
Esta manutenção de independência precisa retornar ao meio espírita com a maior urgência. O orgulho e a vaidade têm alimentado todo o tipo de publicação sem o mínimo critério, sejam mensagens, livros ou revistas. Há que se retornar às raízes de Kardec, não no sentido de enrijecimento do conhecimento, mas às práticas da conduta e da caridade moral que Kardec sempre demonstrou ter.
Neste sentido, basta que o coração se apoie na humildade e na devoção para que todo o resto flua com segurança. Não há outro meio de se buscar a fidelidade doutrinária sem considerar antes a moral proposta por Jesus.
Outro assunto que pode levantar a curiosidade dos leitores são os números de espíritas que Kardec afirma ter na época na cidade de Bordeaux e Lyon (ambas na França): na década de 1860, Bordeaux tinha pouco mais de 162 mil habitantes e Kardec afirma na carta ao Sr. Philipe que havia mais de 10 mil espíritas (correspondente a 6%); Lyon contava com mais de 30 mil espíritas, com 300 mil habitantes (10% da população). Em termos comparativos, hoje em Juiz de Fora (MG), cidade em que atuamos, tem pouco mais de 600 mil habitantes, com 27 mil adeptos espíritas (ou seja, cerca de 4,5%), com mais de 100 anos de divulgação. Devemos reconhecer que é muito pouco. Há que se pensar sobre isso longamente.
4,5% é a porcentagem de adeptos em Juiz de Fora
Mas há outra faceta de Kardec, tão fascinante quanto a religiosa: a lúcida consciência de seu papel dentro da organização e do desenvolvimento da Doutrina dos Espíritos.
Os 50 textos de Kardec publicados pelo Projeto Allan Kardec – até agora – conseguem esboçar Kardec como um modelo ideal de espírita, que todos nós poderíamos seguir. Aguardemos os próximos!
Referências:
Demografia da cidade de Bordeaux
Links de interesse:
Grupo de Estudos Diálogos Espíritas
Grupo de Estudos Opinião Espírita
Grupo de Estudos Filosofia Perene
Excelente Ligia. Sempre que voltamos a Kardec, retornamos encantados e motivados a prosseguir.
Pena que o movimento espírita não quer conhecer muito menos estudar Kardec.