Rejeitar verdades

por Ely Matos

“Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.”

Erasto1

Se você tem estudado seriamente o Espiritismo, é possível que já tenha enfrentado estas duas situações:

  1. O contato com outras correntes de pensamento (no campo da filosofia, ciência ou religião) que possuem pontos comuns e pontos contrários à proposta espírita;
  2. O reconhecimento de que algumas de suas ideias e crenças pessoais parecem ser contrárias ao Espiritismo.

Estas situações costumam gerar alguma insegurança nos estudantes. “É possível que o Espiritismo esteja errado em algum ponto?“; “Sou menos espírita – ou não sou espírita – por discordar de algumas ideias doutrinárias?”; “O Espiritismo não deveria incluir a ideia ‘x’ ou ‘y’, que parece tão lógica e racional?”.

De certa forma, as dúvidas aparecem devido à própria liberdade de pensamento oferecida pelo Espiritismo. Mas como é sabido, o preço da liberdade é a responsabilidade correspondente. Neste caso, a responsabilidade se refere à necessidade de “sair da caixinha” e aprender a pensar de forma autônoma e coerente. Convenhamos: não é um exercício fácil.

É preciso pensar “fora da caixa”.

Como Espíritos, somos seres intelecto-morais. A autonomia de pensamento (pensar com a própria cabeça) está para a questão intelectual assim como o desenvolvimento do amor (a conduta ética em todos os níveis) está para a questão moral. Ambos requerem vontade, para vencer a inércia que nos domina muitas vezes.

Como adquirir esta autonomia? Na questão intelectual do estudo do Espiritismo (que é o foco deste texto), minha sugestão é que precisamos aprender o “pensar espírita”.  Pensar de maneira espírita requer de nós, estudantes, pelo menos três posturas:

  1. Assimilação da estrutura dos princípios básicos;
  2. Estar aberto para a evolução das ideias;
  3. Saber a diferença entre nossas crenças pessoais e as propostas espíritas.

Princípios básicos: o Espiritismo é “a verdade”?

As palavras de Erasto, citadas acima, fazem parte da transcrição de uma comunicação em O Livro dos Médiuns [2]:

Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos velhos provérbios. Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.

Erasto está comentando sobre comunicações mediúnicas, sobre a influência dos médiuns e sobre  teorias que geralmente são erguidas a partir das mensagens dos Espíritos. Como a Doutrina Espírita possui um duplo caráter [3], com princípios básicos estabelecidos não só através de comunicações espirituais mas também a partir do trabalho de análise, comparação e questionamento feito pelos encarnados, o conselho de Erasto é valioso.

Torna-se ainda mais valioso quando queremos comparar as ideias espíritas com propostas científicas, filosóficas ou doutrinárias de outras correntes de pensamento. Como estudantes do Espiritismo, estas comparações devem fazem parte do estudo. O contraste é bom e saudável para quem está estudando. Devemos estudar não só o que é o Espiritismo, mas também o que não é o Espiritismo.  

Muitos acham estranho que Kardec sugira a inclusão de obras não doutrinárias na biblioteca espírita [4]. Acredito que a intenção é justamente que o estudante tenha uma visão mais clara de quais são as respostas espíritas para questões respondidas de maneira diferente por outras doutrinas. Para o estudo ser produtivo, devemos evitar a postura de que o Espiritismo está “sempre certo” enquanto os outros estão  “sempre errados”.  Se partirmos, a priori, de que o Espiritismo está sempre certo, não seria preciso estudar mais nada.

Mas aqui surge uma confusão comum: “então é possível que o Espiritismo não esteja certo?”. Afinal, o Espiritismo não é “a verdade”? Vejamos.

A ideia de três grandes revelações (Moisés, Cristo e Espiritismo) está presente na codificação espírita [5][6]. Mas a associação destas revelações com a Justiça, o Amor e a Verdade é feita pelo Espírito Emmanuel [7] (é preciso que o leitor consulte a questão para entender em que contexto ele apresenta esta ideia). Isso foi suficiente para muito espíritas julgarem que o Espiritismo é a fonte única e inquestionável da “Verdade” – crença reforçada pelo fato que o Espírito que coordenou os trabalhos se autodenominou “A Verdade”, ou “Espírito de Verdade”.

Esta é uma posição perigosa. É óbvio que o Espiritismo trouxe à luz várias “verdades” sobre a vida espiritual e sobre a atuação dos Espíritos. Mas também é óbvio que muitos pontos não foram explicados suficientemente, ou foram explicados apenas com os recursos de conhecimento técnico e científico da época da codificação.  A revelação, como escreveu o próprio Kardec, é progressiva [8]. Avanços nas ciências, nas tecnologias e nas relações sociais permitem que realizemos a “parte humana” no trabalho da revelação e estejamos sempre estudando, questionando e compreendendo diversos pontos doutrinários sob novas perspectivas.

Isso é um procedimento cotidiano em qualquer linha de estudo. Minha área de pesquisa acadêmica  chama-se “Linguística Cognitiva”. Esta linha surgiu gradativamente, a partir da discordância de alguns pesquisadores em relação à linha predominante (chamada “Linguistica Gerativa” que, aliás, é predominante até hoje). Mas é claro que os Linguistas Cognitivos não estão combatendo os princípios da Linguística. Afinal, eles são Linguistas. Os cognitivistas buscaram apenas ampliar explicações para os fatos que a Linguística apresenta, usando recursos de outras áreas, tais como a Psicologia e as Neurociências.

Assim, é natural que haja grande divergência entre os Linguistas  sobre algumas questões. Por exemplo: como a linguagem é adquirida? há uma faculdade humana específica para a linguagem? como os significados linguisticos são construídos? entre outros pontos. Mas vou repetir: mesmo questionando, eles não deixam de ser Linguistas.

Com o Espiritismo, que é um movimento humano-espiritual de pensamento, a coisa não é diferente. É natural que surjam periodicamente questionamentos  a certas interpretações e ideias que se estabeleceram no meio espírita. Nossos grupos de estudo na comunidade espirita.info estão discutindo isso há muito tempo. Claramente não se trata de questionar os princípios básicos – pois sem eles, o Espiritismo deixa de ser Espiritismo; se trata de entender, à luz dos recursos do século XXI e das experiências vividas em 150 anos de movimentos espíritas, a aplicação prática de tais princípios.

A ansiedade causada por querer que o Espiritismo esteja “sempre certo” é apenas uma projeção psicológica: somos nós que queremos estar sempre certos. Paradoxalmente, muitos dos que pensam que o Espiritismo é “a verdade” final, pronta e acabada, desconhecem estas mesmas  verdades. Então, parte do movimento espírita se apoia em ideias e comportamentos que não encontram fundamentos sólidos na codificação ou na filosofia espírita. Por isso, para o “pensar espírita”, o conhecimento (e o reconhecimento) dos princípios básicos é fundamental.

Evolução das ideias: o Espiritismo precisa ser “atualizado”?

Esta é uma questão recorrente entre os estudantes espíritas. Como realizar o caráter progressivo da revelação, sem desfigurar o Espiritismo? Como trazê-lo para o século XXI, sem transformá-lo em “outra coisa”? Mais uma vez, a palavra com Kardec [9]:

A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e madureza intelectual, em que a inteligência, já desenvolvida, não se resigna a representar papel passivo; em que o homem nada aceita às cegas, mas quer ver aonde o conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa — tinha ela que ser ao mesmo tempo o produto de um ensino e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre exame. Os Espíritos não ensinam senão justamente o que é mister para guiá-lo no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o que o homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência à sua custa.  Fornecem-lhe o princípio, os materiais; cabe-lhe a ele aproveitá-los e pô-los em obra.

É difícil ser mais claro que o mestre. Aos Espíritos, cabe apresentar o princípios; aos homens, cabe o desenvolvimento dos mesmos. Assim, os princípios têm sabor de eternidade; o desenvolvimento tem sabor de transitoriedade. Os princípios regem a vida intelecto-moral dos Espíritos; o desenvolvimento está sujeito às condições biológicas, sociais, científicas, culturais dos homens.

É necessário distinguir o perene do transitório.

Mas nós confundimos as duas coisas. Ou queremos que tudo venha dos Espíritos e seja “eterno” e “imutável”, ou achamos a a doutrina pode mudar com os ventos de cada século.

Já usamos em outra ocasião a questão do aborto, como um exemplo claro de “conduta espírita” que deve ser questionada [10]. Naturalmente, isso não significa que os principios espíritas estão invalidados; significa, ao contrário, que eles precisam ser mais estudados, melhor compreendidos e aplicados mais corretamente. O fato de podermos questionar as respostas de O Livro dos Espíritos a respeito do aborto, não fere os princípios espíritas e não faz o Espiritismo ser “a favor do aborto”. O problema do aborto é um problema com aspectos espirituais, mas também sociais, culturais e científicos (ou seja, “humanos”). E é com relação a este aspecto “humano” que a conduta precisa ser discutida. Não com relação aos princípios. O Espiritismo é uma construção coletiva e social de muitos Espíritos e as posturas não são (ou não deveriam ser) baseadas apenas no que dizem um ou dois Espíritos.

Querer congelar os textos da codificação, como se eles fossem eternos, é repetir os erros de todas as religiões que têm “textos sagrados”. Mais importante que os textos são as ideias que fundaram os textos. E com relação às ideias, é preciso estudo, para diferenciar o que está ligado à vida espiritual – e portanto tem um caráter mais perene – e o que está ligado à vida material – e portanto, amarrado ao tempo. Claramente, não se trata nem de aceitar tudo, nem de rejeitar tudo.

Um exemplo explícito é o capítulo “Lei de Reprodução”, incluído em O Livro dos Espíritos[11]. “Reprodução” é um fenômeno material. Assim, boa parte do capítulo envolve temas cuja abordagem muda com a evolução das relações sociais. A necessidade de distinção entre questões espirituais e questões materiais é patente. Neste ponto, é quase impossível não fazer a ligação com a passagem de Jesus com Nicodemos:

“Eu lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram; como crerão se lhes falar de coisas celestiais?” (João 3:12)

Mas nem tudo é flexível, como se a doutrina devesse se adaptar ao pensamento ou comportamento da sociedade atual. Em muitos pontos – e isso é um problema para alguns espíritas – a posição doutrinária não é agradável nem condescendente com posturas humanas aceitas e praticadas socialmente (ou individualmente). Isso não é novidade: as propostas de Jesus, de Buda, de Luther King, de Gandhi, de Lao-Tsé, etc, também não agradaram a muitos.

Assim, a doutrina é progressiva, acompanha o progresso nos estudos científicos e nos costumes sociais, mas não muda seus princípios (infelizmente tão pouco conhecidos da maioria dos espíritas). A questão sobre se o Espiritismo precisa ser “atualizado” (ou não) demanda nosso entendimento sobre o que é princípio e o que é desenvolvimento. Mas  não conseguimos fazer isso sozinhos. Precisamos de um grupo.

Mas eu não concordo com isso

Sim, no “pensar espírita” é preciso considerar a questão individual.

Somos indivíduos. Como Espíritos individuais, todos nós estaremos sempre trabalhando com um conjunto variado de ideias, pensamentos e crenças, abarcando uma variedade de filosofias e condutas. Isso é parte de nossa bagagem reencarnatória e de nossas experiênciais atuais, além de nossas preferências e simpatias. As doutrinas, no entanto, sejam elas quais forem, estabelecem os seus próprios parâmetros e a sua propria delimitação, a partir de princípios básicos e derivados.

Na prática isso significa que vamos discordar do Espiritismo em alguns pontos e vamos encontrar mais ressonância com ideias de outras doutrinas/religiões/filosofias. Muitos espíritas pensam que estão sendo “antiespíritas” por pensarem e sentirem assim. Não se trata disso. Se trata apenas de que, como Espíritos, somos muito maiores do que qualquer doutrina – mesmo a Doutrina Espírita.

Porém, é preciso reconhecer quando nossas opiniões estão alinhadas à Doutrina Espírita e quando não estão, para que a gente não se confunda nem confunda os outros. Isso não é uma coisa fácil, e nem sempre teremos certeza. Por isso o estudo e a discussão em grupo (de novo) é fundamental, assim como ocorre, por exemplo, no ambiente acadêmico. Justamente para evitar que ideias sem fundamento doutrinário acabem sendo tomadas por “Espiritismo”.

Tenha opinião. Mas não a confunda com a Doutrina Espírita.

Além disso, precisamos considerar que não há um posicionamento doutrinário consensual sobre vários pontos – e, para tristeza e aperto do estudante espírita, são as perguntas que os leigos em Espiritismo mais gostam de fazer. Alguns exemplos: Existem discos voadores? Qual a estrutura do do corpo perispiritual? Deve-se evitar a alimentação com carne? A Física Quântica tem alguma relação com os fluidos espirituais? A Lei de Ação e Reação se aplica aos animais? O que significa o sonho que tive esta noite? A lista é longa. Nestes pontos, é possível que cada um tenha uma opinião ou crença diferente.

Também é claro que ninguém é obrigado a aceitar todos os pontos da doutrina. Da mesma forma, a doutrina não é obrigada a se ajustar aos meus pontos de vista. Não é porque eu simpatizo com uma certa ideia Budista, ou um preceito Teosófico,  ou uma orientação Hindu, uma explicação Taoísta, ou uma técnica de PNL, que estas deveriam fazer parte do pensamento espírita. Se fazem sentido para você ou para mim, sejamos felizes com elas e façamos o bem. Mas saiba que elas não são espíritas.

Porém, e se eu quiser saber se a ideia ‘x’ ou ‘y’ é “espírita”? O “pensar espírita” pode ajudar aqui. O texto de Erasto propõe os critérios da racionalidade e do bom senso. São ótimos critérios, mas de alguma forma são subjetivos, se aplicados individualmente. A maioria das pessoas se acha racional e de muito bom senso, embora nem sempre seja. Outros critérios estão associados à universalidade das informações (quantos e quem são os pensadores que compartilham a mesma ideia) e à utilidade (quantos fatos são explicados pela ideia). Mas talvez o mais importante seja a coerência: como esta ideia se ajusta à rede de princípios básicos e derivados do Espiritismo? Há contradições internas? Há contradições externas? Quais são as outras explicações para o mesmo fenômeno? Além disso, lembremos que a questão de crenças não se limita à análise racional: a intuição também exerce um papel aqui.

Assim, quando eu me autodeclaro “espírita” (pois no caso do Espiritismo será sempre uma autodeclaração), isso diz apenas que eu estudo/entendo/aceito/acredito nos princípios básicos do Espiritismo. Não significa que eu concorde com tudo que os Espíritos falam nem que eu seja capaz de praticar tudo o que os Espíritos dizem. Por outro lado, se eu estou estudando Espiritismo ou se eu sou um expositor espírita, o que está em discussão não é a minha opinião pessoal, mas os pontos da doutrina. Essa é uma distinção bem dificil de ser encontrada na prática, seja no movimento espírita, seja no movimento acadêmico. A confusão entre “posturas pessoais” e “pontos doutrinários” é grande para todo lado.

É necessário rejeitar verdades?

Depois desta minijornada, voltamos à citação de Erasto. Penso que não se trata de rejeitar verdades ou falsidades. Quando usamos o “pensar espírita”, o que não queremos é tomar a dúvida por certeza. Não queremos tomar a opinião por princípio. Não queremos tomar a contradição por possibilidade. Se a ideia nova se ajusta sem atrito em nossa rede de crenças, ótimo: ele vai ser tomada por “verdade”, até que nova explicação surja. Caso contrário, deve ser posta em cuidadosa observação. Quem sabe um dia ela se ajuste? Ou quem sabe um dia encontramos uma explicação melhor?


Referências

[1] Comunicação do Espírito Erasto. O Livro dos Médiuns. Allan Kardec. Cap.20, item 230.
[2] Ibid.
[3] A Gênese. Allan Kardec. Cap. 1, item 13.
[4] https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/904/catalogo-racional-de-obras-para-se-fundar-uma-biblioteca-espirita
[5] O Evangelho segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Cap. 1.
[6] A Gênese. Allan Kardec. Cap. 1, itens 45 a 50.
[7] O Consolador. Francisco Cândido Xavier/Emmanual. Questão 271.
[8] A Gênese. Allan Kardec. Cap. 1, item 55.
[9] A Gênese. Allan Kardec. Cap. 1, item 50.
[10] Aborto: ninguém tem razão. Ely Matos.  http://ematos.net/2020/07/13/aborto-ninguem-tem-razao/
[11] O Livro dos Espíritos. Allan Kardec.  Parte 3, Cap. 4.

1 thought on “Rejeitar verdades”

  1. Destaco no texto a questão dos princípios básicos apresentados por Kardec no item 6 da Int. Livro dos espiritos. Muito nas nossas discussões estão fora do que foi proposto ali. Ali estão as verdades. Tudo o mais é passivel de questionamento.
    Segundo ponto: para melhor cultivarmos o pensar espirita necessitamos de discernimento, uma qualidade que o Espiritismo não pode ensinar. Deveríamos ter desenvolvido esta qualidade na escola, mas ela está preocupada com outras coisas.

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